4 de setembro de 2012
Letter II
O som da neve a cair
torna-se quase um promessa que nos é sussurrada ao ouvido. Um longo
manto branco estende-se lá fora enquanto me estendo cá dentro. A
cabeça apoiada no sofá permite-me olhar o tecto com uma calma que
sinto não merecer. As semanas de trabalho são cada vez mais longas
e os períodos de descanso que o fim de semana promete, são cada vez
mais falsas promessas. É incrível como o tempo agora passa tão
depressa. As semanas voam e há tão pouca coisa que fica. No meu
peito uma rapariga loira roda e vira-se para o sofá. O seu cabelo
involve todo o meu campo de visão e o cheiro que me pertence inunda
tudo nesta inocência tão dela. Por ela o tempo não passou.
Provavelmente, como muita gente que não o devia ter feito, o tempo
não lhe prestou atenção e passou por ela sem se aperceber. A barba
cresce-me grisalha agora, o cabelo perdeu varios tons e é agora de
um loiro quase branco. Mas ela não. O cabelo mantém o loiro que
iluminou a minha vida inteira, e a cara permanece a de uma ingénua
criança de 18 anos que me apaixonou há tantos anos. A luz da árvore
de natal brilha sobre ela como se tivesse esse direito, como se
alguma coisa pudesse estar acima dela. Não está. As palavras dela
continuam soltas e ritmadas como uma música que me conduz. Lembro-me
do primeiro natal que tivemos juntos. A forma como as lágrimas
dançavam na sua cara enquanto os olhos dançavam por uma árvore
preta que eu trouxera. Sempre tinha sido tão fácil desenhar-lhe
aquele sorriso. Não posso dizer isto. Aquele sorriso não podia ser
desenhado. Era rasgado. Rasgado no tempo, no ar, no meu peito.
Entrava pela minha vida, pelo meu dia e tinha a arogância de me
roubar o fôlego. De se apresentar com uma leviendade que nos fazia
pensar que qualquer um de nós podia sorrir assim. Tristes tolos, só
ela o podia, e sabia fazer. Lembro-me de ficar calado a ouvi-la,
mesmo que não percebesse do assunto ou nem prestasse atenção às
palavras em si. O que me fascinava eram as expressões, o mexer dos
lábios e o franzir dos olhos. Era como um autómato, programado ao
pormenor para que cada reacção fose perfeita. Como se o movimento
do braço estivesse coordenado com sete ou oito movimentos que
acabavam sempre no mesmo sítio. Aquele sítio em que eu sorrio e ela
continuava na sua sinceridade, na sua simplicidade. Uma pequena mão
percorre o meu peito e pousa na minha cara. Tenho saudades tuas,
sussurro tão baixo e de forma tão leve que não sei se o disse ou
se me limitei a pensar. O pequeno corpo pousado no meu mexe-se e uma
cabeça surge na minha frente. Dois pequenos olhos percorrem-me
brilhantes. "Não nanas ??". Sorrio. A campainha interrompe
a nossa cumplicidade, sempre nossa, cada vez mais velha, cada vez
mais forte. Levanto-me e abro a pesada porta da entrada. Uma rapariga
com os seus sete ou oito anos entra a correr na direcção da avó
que se senta agora delicadamente. A miuda salta para o colo da avó e
no meu estômago qualquer coisa enrola-se para me lembrar de alguém
que fazia aquilo tantos anos antes. Alguém que está agora ali, à
minha frente, e que ri com a neta que é uma autêntica cópia sua. O
cabelo cai-lhe nos ombros da mesma forma, com aquela insistente
mania, que o tempo não lhe tirou, de esconder os ombros e o pescoço
com ele. Procuro a sua mão enquanto os nossos olhos se abraçam, e a
pequena criança olha para nós com um olhar curioso. Beijo a neta na
testa carinhosamente e de seguida encosto a minha cabeça à da minha
pequena e ficamos naquilo durante um tempo que pareceram horas. Ao
afastar-me, anos mais novo, vejo a pequena rapariga sorrir e
aninhar-se no colo da avó. Sento-me e ela encosta-se no meu peito.
Elas adormecem. Eu regresso à minha observação do tecto e imagino
quantos mais natais viveremos juntos. Só espero que sejam muitos. Há
tanto dela que ainda não conheço e continua a surpreender-me dia
após dias. Sempre como no primeiro. Sempre como no último
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